quinta-feira, 12 de novembro de 2015

mixtape

Um curtinha da Bea:

[Mixtape]

Bea Sena
  
               
            - A parte mais difícil de escrever uma história é definitivamente o começo. – Fernando disse, apoiando-se no balcão de madeira da loja. Madalena soprou uma mecha de cabelo que insistia em cair sobre seus olhos, lançando-lhe um olhar que não disfarçava o julgamento.
            - No seu caso a parte mais difícil de escrever uma história é que você não escreve. – falou, ainda sentada no chão em frente a prateleira de CDs cuidadosamente intitulada “Rock Melódico dos anos 80”. – Você é bom com música, mas sobre o que você escreveria? Você não faz nada. – concluiu levantando-se e colocando uma pilha de CDs diante do rapaz. Fernando arqueou uma sobrancelha.
            - Você fala demais. – resmungou.
            - É sério. – Madalena insistiu. – Você é um cara de vinte e dois anos com a rotina de um de cinquenta, você levanta, toma um café preto, percebe que está atrasado apesar de ser óbvio, vem para cá, faz o que você sabe fazer e então... Vai pra casa. E só.
            - Não é .
            - Ficar em casa encarando a tela do computador esperando por alguma ideia brilhante não é bem o que chamo de aventura. – ela rebateu. Fernando lançou-lhe um olhar de desgosto.
            - São quarenta e dois e noventa e sete.
            - E eventualmente tem uma mixtape na sua porta e você nem tenta descobrir de onde vieram! – ela continuou, lhe passando o cartão do banco.
            - A música é boa, por que eu iria estragar isso com a pessoa que colocou elas lá? Débito ou crédito?
            - Débito. Você nunca vai escrever nada decente se não souber porcaria nenhuma sobre a vida. E não quero estragar, mas você só vai aprender vivendo.
            - Como uma garota de dezesseis anos que gasta a mesada inteira se enfiando em uma loja de CDs toda quarta virou minha guru espiritual? – Fernando ironizou enquanto a garota digitava a senha do cartão. Madalena bufou,  lançando-lhe um olhar cansado.
            - É exatamente o que estou tentando dizer. Sua vida é deprimente. E eu não venho toda quarta.
            - Vem sim. Eu sei porque eu estou aqui todo dia. – ele reclamou, vendo a garota mostrar-lhe a língua infantilmente e acenar, saindo da loja. Fernando olhou ao redor, analisando as várias prateleiras brancas repletas de CDs e LPs cuidadosamente separados nos subtipos mais minuciosos de música, cobrirem as paredes pretas. A loja era pequena, bonita e logo fadada à morte, afinal o mundo havia mudado. Mas o rapaz não tinha coragem de contar aquilo ao dono da loja – seu tio – por vários motivos. O primeiro era que seu tio era velho e alimentava um amor sincero por aquela loja, e as camadas de pó que insistiam em se formar nas prateleiras não mais permitiam a presença de seu apaixonado dono e sua rinite. O segundo motivo era que Madalena tinha razão.
            Vinte e dois anos e nenhuma história para contar. Nenhuma namorada que houvesse destruído sua vida, nenhum cachorro que comera seu vídeo game favorito, nem sequer histórias de faculdade – ele havia largado o curso de administração rápido demais para isso. Apenas um tio excêntrico, sua loja de CDs e LPs e uma história cujo começo era mudado toda noite.
*
            Saiu do elevador com as chaves na mão e a sacola do supermercado em outra, a garrafa de vinho em evidência como se tentasse denunciá-lo. Estava já com o pé na metade do caminho quando notou um pequeno volume no tapete, quase caindo ao jogar o pé na outra direção para não pisar na fita.
            Colocou a sacola no chão, levantando o tapete e encontrando a esperada mixtape, reinando entre as camadas de pó.
            - Eu deveria varrer essa porcaria. – o rapaz falou pegando a fita. Ele falava aquilo toda semana.
            Entrou na casa tropeçando na correspondência escorregada para o hall de entrada por debaixo da porta, suspirando ao reparar que a maior parte dela era para a vizinha do apartamento ao lado, cuja correspondência ia para o apartamento vizinho quase sempre desde que se mudara. Fernando saiu rapidamente e empurrou a correspondência por debaixo da porta da moça, se perguntando vagamente como poderia nunca ter prestado atenção nela à ponto de não conseguir se lembrar de seu rosto.
            Colocou a mixtape para tocar no rádio da sala, um aparelho que até ele assumia ser uma velharia com os dias contados. A fita começou a tocar enquanto ele organizava as compras na cozinha, e ele imediatamente sorriu ao reconhecer Angie, dos Rolling Stones. Acompanhou a música entretido, se assustando ao vê-la se repetir. Caminhou até o rádio e retirou a fita, verificando a parte de trás, onde geralmente a pessoa que as enviava colocava a lista das canções. E ali estava Angie, solitária.
            Fernando franziu as sobrancelhas, brincando com a fita na mão. Não entendia o objetivo de enviar uma fita com só uma música. Mas também não entendia porque enviar fitas com músicas à um estranho.
            Foi até seu quarto, indo diretamente até seu criado-mudo, onde as três primeiras fitas aguardavam. A primeira era de um mês antes, e a capa tinha sido pintada de vermelho. A curta lista de músicas brilhava em uma tinta branca com glitter:
Please Please Me, The Beatles
O Tempo Não Para, Cazuza
R U Mine, Arctic Monkeys
A segunda, de duas semanas antes, parecia ter sido feita às pressas. A capa não havia sido pintada, e exibia o nome da marca da fita assim como exibia a lista feita com caligrafia apressada em uma caneta azul comum:
Friday I’m In Love, The Cure
Asleep, The Smiths
Valerie, Amy Winehouse
Open Arms, Journey
Roxanne, The Police
E finalmente a terceira, pintada de preto, voltava a ter o mesmo cuidado da primeira. A lista novamente brilhava devido à caneta com glitter, dessa vez vermelha:
A Team, Ed Sheeran
Boys Don’t Cry, The Cure
Radioactive, Imagine Dragons
A Certain Romance, Arctic Monkeys
            Fernando continuou encarando as fitas em suas mãos, confuso. Sentia como se algo devesse estar óbvio e sua mente perturbada se recusasse a enxergar a resposta. Continuava jogando-as de uma mão para outro como se seus dedos pudessem compreender melhor que seus olhos. Então finalmente percebeu. Please Please Me, O Tempo Não Para, R U Mine. P, O, R. E Friday I’m In Love, Asleep, Valerie, Open Arms, Roxanne. F, A, V, O, R. “Por favor”. As fitas estavam formando uma mensagem.
            “Por favor abra a...”
            - Mas que m... – murmurou sozinho, deixando as fitas caírem no chão.

*
            - Você acaba de me deixar interessada pela sua vida. Estou chocada.
            - Cale a boca, Madalena. – Fernando resmungou, reorganizando a sessão “Origens do Samba”.
            - Só falta uma palavra... – ela murmurou  ignorando-o, pensativa. Arqueou uma sobrancelha. – Já faz uma semana que descobriu isso? Como é possível que não esteja surtando com isso?
            - Calmantes. – ele falou com simplicidade, olhando-a seriamente. Madalena fez uma careta.
            - Eu nunca sei quando você está falando sério ou brincando, mas quer saber? Eu não vou perguntar.
        - A última palavra não interessa até eu saber de onde a fita vem, isso é maluquice. – Fernando falou. – Tem que ser um dos meus vizinhos.
            - Poderia ser qualquer um do prédio.
            - Qualquer um do prédio é meu vizinho.
            - Você é muito rude, cara. – a garota reclamou, soprando uma mecha do cabelo. Foi até o balcão e pegou uma caneta e um bloco de notas. – Eu vou deixar meu número, porque quando essa fita aparecer, eu quero ser avisada.
            - E por que eu faria isso?
            - Porque se eu nunca mais dormir na vida você vai se sentir culpado.
            - Eu não acho. – ele falou indo até ela. Madalena franziu o nariz.
            - Apenas ligue. – disse. – Ou eu nunca mais compro nada.
            E foi embora. Fernando não pode deixar de rir da garota, nem de si mesmo quando pegou o número e o guardou no bolso. As horas pareceram se arrastar até ele poder ir para casa, mas, com o passar do tempo, aquilo ia se tornando rotina. Não havia nenhum outro jeito extremamente metódico de arrumar aquela loja. Seu único hobbie estava morrendo.
            Só percebeu que seu coração estava acelerado ao entrar no elevador, notando que esperava encontrar a fita mais uma vez. Sempre havia uma fita quando ele via Madalena, porque ele sempre via Madalena no mesmo dia da semana. Saiu do elevador afobado, quase não acreditando quando viu a elevação no tapete. A mixtape realmente estava ali.
            Pegou a fita, se segurando para não checar a lista de músicas antes de qualquer coisa. Gostava da surpresa ao escutar a música e, apesar do mistério, devia manter alguma parte de sua dignidade viva. Colocou a fita no bolso e abriu a porta, se deparando com uma carta no chão, o nome Luísa em destaque no papel. Pegou a carta e fez o mesmo ritual de sempre, logo entrando na própria casa e colocando a fita no rádio, ansioso.
            E Patience do Guns N’ Roses começou a tocar, parecendo encher a sala. Fernando ligou o computador, repentinamente certo de que podia escrever o começo da história pela última vez aquela noite. Se distraiu tanto que não notou as músicas passarem e, quando se levantou para pegar uma xícara de café ao som de A Hard Day’s Night dos Beatles, a fita acabou. Sentiu seu coração falhar uma batida e parou abruptamente na porta da cozinha. Pareceu levar horas para girar em seus calcanhares e tirar a fita do rádio, lendo a lista cuidadosamente escrita com uma caneta preta no papel bege:
Patience, Guns N’ Roses
Our Day Will Come, Amy Winehouse
Rainy Days and Mondays, The Carpenters
Toxicity, System Of A Down
A Hard Day’s Night, The Beatles
Porta. “Por favor, abra a porta”. Fernando encarou a fita, boquiaberto, e olhou por cima do ombro para a porta de entrada.
Respirou fundo e caminhou até a porta, vendo sua mão trêmula segurar a maçaneta. Abriu a porta, sentindo todo o ar ser roubado de seu pulmão ao ver sua vizinha parada sobre o tapete com um meio sorriso no rosto. Ela desviou o olhar, tirando uma mecha do cabelo negro curto da frente do olho cor de mel. Estendeu-lhe uma carta:
- Me entregaram sua correspondência.