Um curtinha da Bea:
[Mixtape]
Bea Sena
- A parte mais difícil de escrever
uma história é definitivamente o começo. – Fernando disse, apoiando-se no
balcão de madeira da loja. Madalena soprou uma mecha de cabelo que insistia em
cair sobre seus olhos, lançando-lhe um olhar que não disfarçava o julgamento.
- No seu caso a parte mais difícil
de escrever uma história é que você não escreve. – falou, ainda sentada no chão
em frente a prateleira de CDs cuidadosamente intitulada “Rock Melódico dos anos
80”. – Você é bom com música, mas sobre o que você escreveria? Você não faz
nada. – concluiu levantando-se e colocando uma pilha de CDs diante do rapaz.
Fernando arqueou uma sobrancelha.
- Você fala demais. – resmungou.
- É sério. – Madalena insistiu. –
Você é um cara de vinte e dois anos com a rotina de um de cinquenta, você
levanta, toma um café preto, percebe que está atrasado apesar de ser óbvio, vem para cá, faz o que você sabe
fazer e então... Vai pra casa. E só.
- Não é só.
- Ficar em casa encarando a tela do
computador esperando por alguma ideia brilhante não é bem o que chamo de aventura.
– ela rebateu. Fernando lançou-lhe um olhar de desgosto.
- São quarenta e dois e noventa e
sete.
- E eventualmente tem uma mixtape na sua porta e você nem tenta
descobrir de onde vieram! – ela continuou, lhe passando o cartão do banco.
- A música é boa, por que eu iria
estragar isso com a pessoa que colocou elas lá? Débito ou crédito?
- Débito. Você nunca vai escrever nada
decente se não souber porcaria nenhuma sobre a vida. E não quero estragar, mas
você só vai aprender vivendo.
- Como uma garota de dezesseis anos
que gasta a mesada inteira se enfiando em uma loja de CDs toda quarta virou
minha guru espiritual? – Fernando ironizou enquanto a garota digitava a senha
do cartão. Madalena bufou, lançando-lhe
um olhar cansado.
- É exatamente o que estou tentando
dizer. Sua vida é deprimente. E eu não venho toda quarta.
- Vem sim. Eu sei porque eu estou
aqui todo dia. – ele reclamou, vendo a garota mostrar-lhe a língua
infantilmente e acenar, saindo da loja. Fernando olhou ao redor, analisando as
várias prateleiras brancas repletas de CDs e LPs cuidadosamente separados nos
subtipos mais minuciosos de música, cobrirem as paredes pretas. A loja era
pequena, bonita e logo fadada à morte, afinal o mundo havia mudado. Mas o rapaz
não tinha coragem de contar aquilo ao dono da loja – seu tio – por vários
motivos. O primeiro era que seu tio era velho e alimentava um amor sincero por
aquela loja, e as camadas de pó que insistiam em se formar nas prateleiras não
mais permitiam a presença de seu apaixonado dono e sua rinite. O segundo motivo
era que Madalena tinha razão.
Vinte e dois anos e nenhuma história
para contar. Nenhuma namorada que houvesse destruído sua vida, nenhum cachorro
que comera seu vídeo game favorito, nem sequer histórias de faculdade – ele
havia largado o curso de administração rápido demais para isso. Apenas um tio
excêntrico, sua loja de CDs e LPs e uma história cujo começo era mudado toda
noite.
*
Saiu do elevador com as chaves na
mão e a sacola do supermercado em outra, a garrafa de vinho em evidência como
se tentasse denunciá-lo. Estava já com o pé na metade do caminho quando notou
um pequeno volume no tapete, quase caindo ao jogar o pé na outra direção para
não pisar na fita.
Colocou a sacola no chão, levantando
o tapete e encontrando a esperada mixtape,
reinando entre as camadas de pó.
- Eu deveria varrer essa porcaria. –
o rapaz falou pegando a fita. Ele falava aquilo toda semana.
Entrou na casa tropeçando na
correspondência escorregada para o hall de entrada por debaixo da porta,
suspirando ao reparar que a maior parte dela era para a vizinha do apartamento
ao lado, cuja correspondência ia para o apartamento vizinho quase sempre desde
que se mudara. Fernando saiu rapidamente e empurrou a correspondência por
debaixo da porta da moça, se perguntando vagamente como poderia nunca ter
prestado atenção nela à ponto de não conseguir se lembrar de seu rosto.
Colocou a mixtape para tocar no rádio da sala, um aparelho que até ele
assumia ser uma velharia com os dias contados. A fita começou a tocar enquanto
ele organizava as compras na cozinha, e ele imediatamente sorriu ao reconhecer Angie, dos Rolling Stones. Acompanhou a
música entretido, se assustando ao vê-la se repetir. Caminhou até o rádio e
retirou a fita, verificando a parte de trás, onde geralmente a pessoa que as
enviava colocava a lista das canções. E ali estava Angie, solitária.
Fernando franziu as sobrancelhas,
brincando com a fita na mão. Não entendia o objetivo de enviar uma fita com só
uma música. Mas também não entendia porque enviar fitas com músicas à um
estranho.
Foi até seu quarto, indo diretamente
até seu criado-mudo, onde as três primeiras fitas aguardavam. A primeira era de
um mês antes, e a capa tinha sido pintada de vermelho. A curta lista de músicas
brilhava em uma tinta branca com glitter:
Please
Please Me, The Beatles
O
Tempo Não Para, Cazuza
R
U Mine, Arctic Monkeys
A segunda, de duas semanas antes,
parecia ter sido feita às pressas. A capa não havia sido pintada, e exibia o
nome da marca da fita assim como exibia a lista feita com caligrafia apressada
em uma caneta azul comum:
Friday
I’m In Love, The Cure
Asleep,
The Smiths
Valerie,
Amy Winehouse
Open
Arms, Journey
Roxanne,
The Police
E finalmente a terceira, pintada de
preto, voltava a ter o mesmo cuidado da primeira. A lista novamente brilhava
devido à caneta com glitter, dessa vez vermelha:
A
Team, Ed Sheeran
Boys
Don’t Cry, The Cure
Radioactive,
Imagine Dragons
A
Certain Romance, Arctic Monkeys
Fernando continuou encarando as
fitas em suas mãos, confuso. Sentia como se algo devesse estar óbvio e sua
mente perturbada se recusasse a enxergar a resposta. Continuava jogando-as de
uma mão para outro como se seus dedos pudessem compreender melhor que seus
olhos. Então finalmente percebeu. Please
Please Me, O Tempo Não Para, R U Mine. P, O, R. E Friday I’m In Love, Asleep, Valerie, Open Arms, Roxanne. F, A, V, O, R. “Por favor”. As fitas estavam formando uma
mensagem.
“Por favor abra a...”
- Mas que m... – murmurou sozinho,
deixando as fitas caírem no chão.
*
- Você acaba de me deixar
interessada pela sua vida. Estou chocada.
- Cale a boca, Madalena. – Fernando
resmungou, reorganizando a sessão “Origens
do Samba”.
- Só falta uma palavra... – ela
murmurou ignorando-o, pensativa. Arqueou uma sobrancelha. – Já faz uma semana
que descobriu isso? Como é possível que não esteja surtando com isso?
- Calmantes. – ele falou com
simplicidade, olhando-a seriamente. Madalena fez uma careta.
- Eu nunca sei quando você está
falando sério ou brincando, mas quer saber? Eu não vou perguntar.
- A última palavra não interessa até
eu saber de onde a fita vem, isso é maluquice. – Fernando falou. – Tem que ser
um dos meus vizinhos.
- Poderia ser qualquer um do prédio.
- Qualquer um do prédio é meu vizinho.
- Você é muito rude, cara. – a
garota reclamou, soprando uma mecha do cabelo. Foi até o balcão e pegou uma
caneta e um bloco de notas. – Eu vou deixar meu número, porque quando essa fita
aparecer, eu quero ser avisada.
- E por que eu faria isso?
- Porque se eu nunca mais dormir na
vida você vai se sentir culpado.
- Eu não acho. – ele falou indo até
ela. Madalena franziu o nariz.
- Apenas ligue. – disse. – Ou eu
nunca mais compro nada.
E foi embora. Fernando não pode
deixar de rir da garota, nem de si mesmo quando pegou o número e o guardou no
bolso. As horas pareceram se arrastar até ele poder ir para casa, mas, com o
passar do tempo, aquilo ia se tornando rotina. Não havia nenhum outro jeito
extremamente metódico de arrumar aquela loja. Seu único hobbie estava morrendo.
Só percebeu que seu coração estava
acelerado ao entrar no elevador, notando que esperava encontrar a fita mais uma
vez. Sempre havia uma fita quando ele via Madalena, porque ele sempre via
Madalena no mesmo dia da semana. Saiu do elevador afobado, quase não
acreditando quando viu a elevação no tapete. A mixtape realmente estava ali.
Pegou a fita, se segurando para não
checar a lista de músicas antes de qualquer coisa. Gostava da surpresa ao
escutar a música e, apesar do mistério, devia manter alguma parte de sua
dignidade viva. Colocou a fita no bolso e abriu a porta, se deparando com uma
carta no chão, o nome Luísa em destaque no papel. Pegou a carta e fez o mesmo
ritual de sempre, logo entrando na própria casa e colocando a fita no rádio,
ansioso.
E Patience do Guns N’ Roses começou a tocar, parecendo encher a sala.
Fernando ligou o computador, repentinamente certo de que podia escrever o
começo da história pela última vez aquela noite. Se distraiu tanto que não
notou as músicas passarem e, quando se levantou para pegar uma xícara de café
ao som de A Hard Day’s Night dos
Beatles, a fita acabou. Sentiu seu coração falhar uma batida e parou
abruptamente na porta da cozinha. Pareceu levar horas para girar em seus
calcanhares e tirar a fita do rádio, lendo a lista cuidadosamente escrita com
uma caneta preta no papel bege:
Patience,
Guns N’ Roses
Our
Day Will Come, Amy Winehouse
Rainy
Days and Mondays, The Carpenters
Toxicity,
System Of A Down
A
Hard Day’s Night, The Beatles
Porta. “Por favor, abra a porta”. Fernando
encarou a fita, boquiaberto, e olhou por cima do ombro para a porta de entrada.
Respirou fundo e caminhou até a porta,
vendo sua mão trêmula segurar a maçaneta. Abriu a porta, sentindo todo o ar ser
roubado de seu pulmão ao ver sua vizinha parada sobre o tapete com um meio
sorriso no rosto. Ela desviou o olhar, tirando uma mecha do cabelo negro curto
da frente do olho cor de mel. Estendeu-lhe uma carta:
- Me entregaram sua correspondência.